Publicado em 03/12/2020 às 14:06, Atualizado em 13/09/2024 às 19:42
Avisada de que filho era alvo de Nando, família se mudou para casa onde saga pela saúde mental de jovem acabou de jeito trágica.
A mudança do bairro Danúbio Azul para o Vida Nova parecia significar um recomeço para a família de Miqueias Roger Gabriel da Silva. O jovem de 23 anos que morreu amarrado durante um surto em casa, na madrugada de ontem, escapou do serial killer Nando, que julgava e mandava matar usuários de drogas no bairro.
Avisados de que Miqueias estava na mira de Nando, a família tratou de se mudar e conseguiu uma casa no Vida Nova, onde nessa quarta-feira terminou a saga de mãe e padrasto pela saúde mental do rapaz.
O velório aconteceu na manhã de hoje, na Pax Campo Grande, com cerca de 15 pessoas, entre familiares, amigos e vizinhos. O sepultamento foi realizado no cemitério nas Moreninhas, mesmo jazigo onde está o corpo do pai biológico.
Ainda na capela onde acontecia o velório, ao lado do caixão do filho, que estava aberto, a mãe parecia desolada e num sussurro respondeu que era bom conversar com o padrasto dele, apontando para o marido Joel.
Aposentado, Joel Vicente Conde, tem 61 anos de idade e 10 de casado com a mãe de Miqueias. Tempo em que se dedica também à criação dos três filhos dela como se fossem dele. É Joel quem narra toda a batalha travada pela família para que Miqueias tivesse tratamento.
Só quem já passou por isso entenderia a medida de amarrar o rapaz que estava em surto, contada e nomeada como "detenção" pelo padrasto. Eles aguardavam amanhecer o dia de ontem para mais uma vez ligar para os bombeiros e levá-lo ao UPA para então ser encaminhado e conseguir vaga para um Caps (Centro De Atenção Psicossocial).
Há três meses, o enteado tinha saído da casa onde vivia com mãe, padrasto e duas irmãs. Além da dependência química, Miqueias também tinha esquizofrenia e tomava remédio controlado. "Dia 28 de agosto, chegou uma curva de rio que fez a cabeça dele e tirou ele de casa. Era drogado também. Eles alugaram um quartinho e ficaram morando nessa casa. Ele passava em frente de casa só com bebida e droga. Pelo que fiquei sabendo, até injetando eles estavam", descreve o padrasto.
Segundo o relato do padrasto, a família foi orientada pelos policiais militares que fazem rondas pelo bairro e já conheciam o drama dos pais com Miqueias para pedirem medida protetiva. "Como ele estava agressivo, a polícia do bairro que ia direto em casa, falou pra mãe dele pedir medida protetiva porque a gente estava correndo risco. Como ele tinha saído de casa, eu tenho duas crianças que não vão crescer nunca, nós fizemos e ele não podia ficar perto de casa mais", conta o padrasto.
Miqueias nunca fez nada contra a família, até que na semana retrasada, as roupas dele foram jogadas na frente da casa dos pais. "Aí eu falei para a minha mulher, pega esse papel [a medida protetiva], guarda, põe ele pra dentro. Sem dinheiro, viciado e com problema que ele tem, vai jogar o coitado na rua? Eu sou o pai de criação dele", justifica a decisão.
"Peguei toda a roupinha dele e falei: 'só que tem um negócio, esse quarto você vai ficar, mas não é seu mais. Essa é a lei' e ele ficou".
O padrasto não trancava o enteado em casa "porque ele preso, se sentia um passarinho enjaulado", descreve Joel.
No domingo, Miqueias avisou que ia jogar futebol no campinho do bairro, e quando a família viu uma viatura da Guarda Municipal se aproximando, já sabiam que ele havia aprontado. O jovem teria invadido uma casa e queriam linchá-lo. "Eu fui buscar ele no campinho e os guardas falaram: 'vocês dão um jeito, interna'. Aí eu deixei ele em casa trancado, liguei no Caps, mas me falaram que eu não poderia ir direto lá, porque nem tinha como interná-lo, eu tinha que ir no posto 24h e esperar vaga. Fomos 11h30 da noite, pedi para deterem ele, porque ele ia fugir", lembra Joel.
Dito e feito. O enteado saiu pela porta da frente e só voltou para casa às 4h da manhã. "Ele andava de lá pra cá, de cá pra lá, liguei no Caps de novo, levamos ele no UPA e foi a mesma coisa. Dispensaram ele. Eu não sou psiquiatra, mas eu vi que ele não estava bem. Na terça-feira, levei na Upa, dispensaram dizendo que ele estava bem", resume.
Acostumado a lidar com os Centros de Atenção Psicossocial, até pelo atendimento dos últimos quatro anos que Miqueias fez, e também o acompanhamento que as irmãs do rapaz também fazem, seu Joel não questiona o trabalho do Caps. "É o tal do Sisreg [Sistema de Regulação], que é uma coisa muito errada. Tinha que mudar isso, se é especial, tem que ir no Caps direto, mas não tem vaga. Só mandam esperar e não chamam, esses pacientes que têm problemas, eles não esperam. O Caps não tem culpa não, eles estão com 10 lá internados e fazem o possível e o impossível", enxerga.
Joel acredita que o enteado usava drogas desde os 13 anos, e o primeiro surto teria sido aos 16. "Ele fez tratamento no Caps durante anos, minha esposa ia lá buscava o remédio dele e controlava", pontua.
"Fuga" - "Lembra do Nando exterminador? Ele ia matar ele, porque o Miqueias era viciado e nós morávamos lá no Danúbio. Ele ficou ruim lá, foi lá que começou na droga", diz o padrasto.
Criado no Danúbio Azul, Miqueia chegou à época até a ser internado. Lá, Joel morou durante sete anos, até que foi chamado por um vizinho. "Ele disse: 'vem cá, vem cá correndo. Você consegue uma casa num outro lugar?' Eu falei 'consigo'. 'Tira o Miqueias daqui, porque vão matar o Miqueias'. Aí eu falei que ele estava se tratando, até numa reportagem, o Nando fala: 'tem mãe que tá tirando o filho da droga'. Aquilo foi para a minha esposa, ele não falou nome nem nada, mas falou direto pra ela", recorda.
Três anos atrás, eles se mudaram para a casa onde Miqueias morreu na madrugada de ontem. "Eu não deixava entrar droga em casa, nem fazer rodinha na frente, eu mandava tudo embora e dizia que ia chamar a polícia e eles sabiam que eu chamava mesmo".
Sobre lutar pelo enteado, o aposentado diz que tudo o que pode fazer por Miqueias, ele e a mãe fizeram. "Eu sendo pai de criação fiz tudo o que eu podia. Recorri a todos os lugares, fui até na Defensoria", fala.
A morte - Na madrugada de quarta, seu Joel resolveu deter o enteado o deixando amarrado. O plano era esperar amanhecer para ligar para os bombeiros irem buscar e levar até a Upa. "Detemos ele. Fiquei com ele, quando ele sossegou, eu fui deitar. Levantei às 5h, quando levantei, estava essa fatalidade. Ele morreu a base de 4h, 4h15 da manhã", afirma.
O aposentado diz que levantou e enquanto fazia café, abriu a janela que dava para o quarto onde Miqueias estava. "Eu vi o estômago dele inchado e falei pra minha mulher ir lá, porque ele não estava legal. Ela viu, ficou desesperada", reproduz.
A mãe dele foi acalmada pelo padrasto, que tentou reanimar o rapaz e ligou para os bombeiros. "Chamei os bombeiros, tentei reanimar e quando eles chegaram eu disse que não adiantava. Ele já tinha falecido. Chegou uma viatura do bairro que explicou para o doutor toda a situação, que eles sempre faziam ocorrência em casa.
Eu ia cedo telefonar para os bombeiros levar meu filho. A regulação vai esperar mais vítimas como meu filho? Isso não existe", desabafa.
Como será voltar para a casa, Joel não segura o choro. "Vai ser difícil, porque ele é um filho meu. Você pega amor, pega mais amor neles do que próprio filho teu", desaba em lágrimas. "A vida é dura, dura mesmo. Quem tem família assim, com problema, olha, são vitoriosos. A gente precisava ter uma repartição que apoiasse eles. É duro, não é fácil não".
Sobre acreditar que o fim seria outro, o padrasto deixa a reflexão: "isso é uma esperança que todos os pais, todas as mães têm. É essa a esperança deles, de cura, de sarar, de ficarem bem e eles lutam até o final".